quinta-feira, 24 de maio de 2007

A SOMBRA DO PESSEGUEIRO


Sombra do Pessegueiro

Jorge de Lainho





Dedicatória

Ao meu avô Joaquim, conhecido entre alguns dos seus amigos como o “de Lainho”, nome que nunca o vi ou ouvi utilizar e que não deixou a nenhum dos seus filhos, para esconder não sei muito bem o quê, e de que agora me aproprio em sua homenagem e para esconder não sei muito bem o quê. Que descanse em paz.

Jorge de Lainho


A Velha-do-Postigo


A velha-do-postigo postigava o mundo, sentada num banco, primeiro de pedra, depois de bronze, ferro e aço, e agora de plástico almofadado, de esponja revestida. Fazia renda, rendilhando o que via e o que não via pelo postigo, de onde postigava o mundo. Para ela, velha sabida, de postiguência feita, o seu mundo não era só o mundo que postigava. O mundo, ela sabia-o, era a renda que rendilhava, o postigo que a iluminava e o mundo que postigava.

Ainda que pouco soubesse do mundo, como sabidamente reconhecia, as suas dúvidas diziam respeito ao banco em que se sentava e onde rendilhava o que via e o que não via.

A renda que fazia, e por si se desfazia para que algo fizesse, ainda que se fizesse e desfizesse, sem dúvida, era renda. A respeito dela, sua mente não podia ter qualquer dúvida. Aquilo que era necessário desrendilhar era o porquê de se fazer e desfazer. Não tendo, até agora, melhor resposta, aceitava, do alto do seu banco almofadado, apelando a sua postiguência inquestionável, que, da renda, a essência era precisamente o fazer-se e desfazer-se. Não era sem finalidade que tal acontecia: só fazendo e desfazendo se poderia fazer o que quer que fosse. Não se desfizesse o que feito estava e nada mais haveria que fazer. Seria o fim, a morte da renda. Sendo a renda uma das partes do mundo, a rendilhar e a desrendilhar, a morte da renda corresponderia à morte do mundo. Era vê-la, dedos trémulos, a desfazer a renda, quando ela, por si, não se desfazia. Assim, se a renda se não desfizesse, uma vez que era a velha que a fazia, ela própria a desfaria para que a pudesse fazer. Enfim, a renda era, sem qualquer margem para dúvida, renda.

O postigo, esse, era também um postigo. Havia quem dissesse que não, que o postigo era uma janela, ou então um simples buraco na parede. Mas ela, velha e sabida e amante de saber, desprezava querelas sem sentido. Fosse buraco ou janela, o postigo seria sempre um postigo. De qualquer modo, todos os buracos são postigos e todas as janelas postigos são. À medida que a renda se fazia ou desfazia, assim o postigo era janela ou buraco. Era precisamente nesse movimento de fazer e desfazer que se poderia descortinar que afinal, por detrás dos acidentes do que fica feito e do que fica desfeito, se encontrava o postigo. Que lhe chamassem janela ou buraco, a ela, velha-do-postigo, dona de si como era, pouca diferença fazia. O postigo era a luz da sua renda, e ao iluminá-la dava sentido e definia-se a si mesmo. Não iluminasse ele a renda, ou não se rendilhasse o que ele iluminava, e então, sim, o postigo deixaria de ser postigo, mas também não seria buraco nem janela. Em muralha se transformaria, muralha que ruiria no preciso instante em que se formasse, abrindo assim um novo postigo.

Então, o postigo era, de facto, um postigo, e um postigo para sempre seria, embora legítimo fosse reconhecer que, em momentos de sonolência, em que o aspirar profundo de ar fresco elevasse as bochechas fechando os olhos semicerrados e pesados de postigar o mundo, o postigo se transformasse ou parecesse transformar-se em muralha. Mesmo assim, o postigo era um postigo. Assunto encerrado, este. Encerrado, aqui e agora, para que dele nunca mais se fale.

A história da velha-do-postigo acabaria aqui mesmo, se alguma dúvida se levantasse a respeito do postigo. A própria velha não existiria, o que, como todos facilmente entenderão, não pode ser, uma vez que dela estamos a falar. Mais grave ainda: esta história, que é verdadeira, e bem poderia ser falsa que, para o caso, tanto faz, deixaria de ser uma história o que, como é óbvio, também não pode ser. Ser falso ou verdadeiro é igual, o que importa é que seja, e isso esta história é. Portanto, se é, é verdadeira, mesmo que seja falsa. Assim se conclui que se, por artes do diabo, o postigo não é postigo, esta história fará com que seja. E tranquilamente poderemos respirar fundo. E que os deuses nos protejam de, com este acto revigorante, fecharmos os olhos, como de quando em vez acontece à velha-do-postigo.

Agora sim, este assunto está encerrado, embora me custe pensar que alguém ainda possa ter dúvidas sobre ele. Que posso fazer eu? O destino me fez contador de histórias, histórias verdadeiras, para que conste. Nem o destino me pregaria a partida de me fazer contar histórias que o não fossem. Humildemente, reconheço que o destino as contaria melhor do que eu. Só que o destino não conta, nem sabe contar. Se ao menos pudesse contar com ele, talvez tudo me fosse mais fácil…


(…)


Já sabemos, então, que a renda é, definitivamente, renda e o postigo, sem qualquer margem de dúvida, postigo.

Do mundo que, do postigo, a velha postigava também não podia haver qualquer dúvida: era mundo. Não todo o mundo, mas mundo. Era o mundo que a sua postiguência lhe assegurava ser postigável, e portanto susceptível de ser rendilhado e desrendilhado. Como já foi dito, o mundo era mais do que o mundo: era também a renda e o postigo. Mas o mundo postigável, embora fosse menos do que o mundo, era seguramente mundo. E esta convicção lhe bastava para que, sem descanso, o postigasse dia após dia. Não fosse, este mundo, mundo, e de que lhe serviria a certeza de que o postigo é postigo? Assim, se concluia que o mundo postigado não era todo o mundo, mas era todo o mundo postigável. A postigalidade do mundo postigável era a garantia do próprio mundo, isto é, da renda, do postigo e do mundo.

Agora, o banco onde a velha-do-postigo se sentava, seria ele mesmo um banco? Isso, ela não podia garantir. Postigável, não era. Rendilhável, também não. O máximo que dele se podia dizer é que era sentável. Mas quem se sentava era a velha e não o banco que, por sinal, nem bancável se podia dizer que era. Já fora de pedra, de bronze e agora era de plástico. Nem sequer pedrável, bronzável ou pasticável se podia dizer que ele era. Que outrável podia ele ainda ser, se é que era algo? Esta era a verdadeira angústia da velha. Esta angústia, sim, era uma angústia bancal e, portanto, rendilhável. Mas o que podia ser rendilhado ou desrendilhado era essa angústia, não o banco. A sua angústia tornava-se então numa angústia ultrabancal, porque, claramente definida como o era, se definia em função de algo que não se sabia se era ou não era. O mais certo é que não fosse, para maior desconcerto da velha e da sua rendilhada postiguência.

Onde raio se sentava então a velha? No banco não sabia se era: Seria na angústia?

Assim vivia a velha-do-postigo, postigando o mundo, que rendilhava e desrendilhava ao ritmo a que a renda se fazia e desfazia. Era uma postiáguia, esta velha. A sua postigaria vinha-lhe da ampla e reconhecida postiguência, da renda e dos rendilhos e desrendilhos que dela postiaguiamente obtinha e, sobretudo, do bom uso que do postigo fazia.

Vendo-a sentada ao seu postigo, poder-se-ia pensar que estava de castigo, ou castigando o mundo. Mas não. Sendo claro que postigo é postigo e só postigo pode ser, castigo não é, tal como postigar castigar não pode ser.

Foi nestes preparos que conheci a velha-do-postigo. Entrara, por engano, no seu quarto, em busca de um gato que, sentindo-se postigado (só depois o vim a entender) miava desesperado.

O quarto era redondo. Tudo era redondo no quarto. Só o postigo era quadrado. A própria velha era redonda, tal como a renda que, rendilhando-se, se redondava nas mãos redondas da velha. Era um espectáculo sublime aquele. A velha, sentada no seu banco, rendilhando e desrendilhando, postigava sem despostigar.

Ouvia que murmurava. Como quem passa da luz para a penumbra, precisei de algum tempo para entender os murmúrios que seus lábios, húmidos, mastigavam. O mundo que postigava, assim o fui entendendo à medida que me fui habituando àquele silêncio murmurado, era um medronheiro que todos os dias medronhava. O medronheiro era o mesmo que, medronhando, todos os dias era outro. Tal como a renda se rendilhava e desrendilhava, e ao mesmo ritmo preciso com que os rendilhos e desrendilhos em renda se consumavam, assim o medronheiro medronhava e desmedronhava sem se consumir nos medronhos e desmedronhos que em si se conservavam.

Este, se bem entendi os murmúrios da velha, era todo o mundo postigável. E tanto havia para postigar, que nem tempo se concedia para melhor se acomodar no banco em que se sentava.

(…)

A velha-do-postigo ainda dormia. Sonhava que postigava. De tempos a tempos, um sorriso abria-se-lhe na boca e nos cantos dos olhos. Nunca fora tão feliz, a velha-do-postigo, agora que dormia e a sua postiguência, em sonho, se revelava ser uma douta postigaria. Dormindo como dormia, sonhando como sonhava, o postigo aparecia-lhe dourado, postigando um mundo de ouro emoldurado. Já podia luxar. E descansava de postigar, como nunca antes havia descansado. Tomava chá e sentada contava o que postigava a quem a quisesse ouvir. Havia mais quem ouvisse do que quem quisesse, mas para ela, catequista do postigo, detentora de uma ampla postigaria, era igual ouvir sem querer ou querer ouvir. Demoníacos eram aqueles que, por querer ou sem querer, não ouviam. A esses ameaçava: “Um dia vos postigarei. Será tarde para vos arrependerdes. Nunca vos perdoarei.” O postigo assim se transformou num castigo, num sonho de castigo, ou num castigo de sonho.





A Verdade da verdade

Numa perspectiva científica rigorosa, um problema só é um problema científico se a ciência assim o entender, isto é, se houver perspectivas de a ciência o poder resolver. Se não, então o problema será do domínio da especulação ou do ocultismo.
Ora, se procuras levar uma vida digna, sobretudo se essa dignidade passar pelo exercício do poder, tens de saber respeitar esse princípio científico. Só tem estatuto de problema aquele a que tu saibas responder. Se, de todos os que te colocarem, não souberes responder a nenhum, deves muito simplesmente ignorá-los a todos porque serão seguramente irrelevantes.
O mesmo se deve dizer relativamente ao problema da verdade.
Antes que comeces a fazer as confusões habituais de gente medíocre, convém que saibas que a verdade é um adereço. Num palco, por exemplo, nenhum adereço deve ofuscar o desempenho dos actores; pelo contrário, os adereço devem realçar o trabalho dos actores. Se algum adereço não cumprir esta missão, é porque é descartável e, em bom rigor, deve ser imediatamente descartado. Há gente medíocre que entende - vá lá saber-se porquê - que a verdade é a figura principal de todos os cenários políticos ou da vida comunitária. Tens portanto de optar: se queres continuar a ser medíocre, continua a pensar que a verdade vale o que quer que seja por si só, mas não te queixes de seres um falhado na vida; se queres ter sucesso, usa a verdade para embelezar os teus actos e se alguma vez, como acontecerá frequentemente, a verdade não servir para isso, aprende a pô-la de lado. A verdade deve estar ao teu serviço e não ao serviço de si mesma. A verdade ao serviço de si mesma é um totalitarismo que tu nunca podes aceitar, pela simples razão de deixares de ser capaz de a controlar.
Esta linguagem, se foste educado como quase todos nós, numa perspectiva de vida medíocre, pode parecer-te estranha. E é, de facto, não porque seja ininteligível, mas porque é uma linguagem de elite, só acessível aos iniciados na ciência da banalidade.
A banalidade é, com efeito, uma ciência exacta que se perfila no horizonte do conhecimento humano como a final e a decisiva modalidade de conhecimento superior do ser humano. Embora seja adereço, como qualquer verdade, a verdade é que não te bastarão as lições que programei para este Tratado para que aprendas a ter sucesso. Mais grave ainda: sendo eu um simples mestre da banalidade, não alcançarei nunca a perfeição nesta ciência, que, no entanto está perfeitamente ao teu alcance. Passa-se comigo algo idêntico ao que se passa com um treinador de futebol: o treinador já não tem fôlego sequer para jogar um jogo a sério durante mais do que cinco minutos, fuma, tem barriga, etc., mas compete-lhe a ele fazer com que os seus jogadores sejam os melhores do mundo. Em ti, que lês este Tratado, deposito toda a esperança num futuro repleto de banalidades.
Voltando à vaca fria, compreenderás então que a verdade, sendo um adereço, deve estar ao teu serviço. De uma forma ainda muito incipiente, esta é já uma prática de sucesso de quase todos os poderosos. Por exemplo, quem não aceita de bom grado que quem revele as verdades de um país, ou de uma comunidade, ou de um serviço, seja considerado traidor? Precisamente, o traidor é aquele que sabe a verdade e a divulga. Muitas vezes, essa verdade é conhecida de toda a gente, mas é guardada como um segredo, um segredo que toda a gente conhece, mas um segredo porque ninguém fala dele. Aplaude-se a condenação do traidor que teve a ousadia de falar de uma coisa que toda a gente sabe, mas que era segredo. Vejamos um caso concreto: qualquer governante tem o direito de dizer que o país está a enriquecer; se o que ele diz é verdade ou mentira, isso é um assunto que não lhe diz respeito: a verdade, como vimos, é aquilo que pode ilustrar a importância do actor, não aquilo que lhe tira a luz. Traidor será aquele, medíocre claro está, que se pergunta em voz alta: Como pode estar o país a enriquecer, se cada vez há mais pessoas a comer os seus próprios dentes para não passar fome? Esta é uma pergunta íntima, subjectiva, sem valor de verdade e que todavia configura alta traição aos superiores interesses do país.
Note-se que, em última análise, a banalidade enquanto ciência tem no seu horizonte, já não tão longínquo como se pensa, garantir a qualquer ser humano a possibilidade de decretar que a soma de 2 com 2 não tem de ter o resultado de 4, pode variar e até pode não dar resultado nenhum. Esta soma pode, se assim se quiser, por vontade política, deixar de existir no cenário das operações possíveis. O mesmo se diga, por exemplo, a respeito do facto de a soma dos ângulos de um triângulo ser equivalente a dois ângulos de um quadrado, qualquer que seja a dimensão de um e de outro. Esta é uma verdade que, como está bem de ver, pode não interessar a toda a gente. E depois como pode uma verdade estar acima de quem manda? Quem manda até pode estar distraído e não saber dela, e de repente alguém atira-lhe com a verdade à cara... Isto não é coisa que se faça. Um dos objectivos mais grandiosos desta emergente ciência da banalidade é garantir que este tipo de desfaçatez desapareça definitivamente nas nossas comunidades mais desenvolvidas.


O Pragmático

A vida é um tiro de pistola, disparado contra nós, à queima-roupa. Muitas coisas seriam diferentes, se nos tivesse sido dada a oportunidade de nos prepararmos para ela, para a vida. Em sono profundo, fomos levados a visitar um teatro, para cujo palco fomos empurrados, sem aviso prévio. Acordámos, com a pancada que recebemos nas costas, já frente a uma plateia completamente lotada. Se fomos brutalmente tirados a um sono profundo e arremessados para um palco à força, à revelia de todos os direitos, liberdades e garantias, a verdade é que, uma vez diante do público, o palco é todo nosso e a liberdade não tem limites. Agora, temos de nos desenrascar com os holofotes em cima de nós, a luz intensa a ferir-nos os olhos.
Entrar na vida foi uma fatalidade, mas vivê-la é a própria expressão da liberdade. Fomos arremessados para a vida, e isso, para que fomos arremessados, temos de construí-lo por nossa própria conta e risco, temos mesmo de o fabricar, porque não existia para nós quando nos tiraram do sono.
Acontece que, sendo a vida fabricada por nós, por cada homem, ela não se cansa de nos colocar problemas, aqueles que o homem não coloca a si próprio, que lhe caem sobre a cabeça como um balázio disparado pelo seu viver. Estes problemas, os que a vida coloca ao homem, são sempre do mesmo género e da mesma família: uma realidade diferente deveria substituir aquela que está diante dos nossos olhos. Como meteoros desalmados, rasgando os céus, desenfreados, esses problemas nascem, todavia, dos nossos pés que escondem, pousados, o único sítio do universo que não podemos ver. Em bom rigor, os problemas estão em pretender que o que não é passe a ser. São problemas práticos, portanto. Práticos, porque não foram colocados por nós à vida, mas disparados sobre a nossa cabeça por ela.
Pois bem, o nosso herói, o homem pragmático, hommo pragmaticus (fique aqui registada a patente em língua digna), moderno, não por ser idealista, romântico ou racionalista, antes por não saber, ele, nem quem quer que seja, que coisa é verdadeiramente, a não ser que é um homem de hoje, como tem sido de todos os tempos..., o homem pragmático, prossigamos então, no primeiro instante em que pousou os pés no palco da vida, tomou a firme e embriagante decisão de ser um puro homem de acção, um homem para resolver problemas práticos. E não escolheu mal: um puro homem de acção é um animal de puro sangue, é um verdadeiro animal.
O homem pragmático está sempre alerta. Vive nas fronteiras de si mesmo, debruçado para o lado de fora. Vigia as sombras do cosmos e nelas descobre os inimigos, todos sem excepção, a abater. Só lhe interessa, todavia, o que seja visível, tangível. Do círculo só vê a circunferência, aquilo que se vê, precisamente. Uma impertinente dor de dentes ou uma inoportuna angústia íntima podem fazê-lo recuar a atenção da periferia para o interior do círculo, mas só num instante fugaz, que um homem pragmático não se interessa por ninharias.
Como já alguém disse, vede os lírios dos campos, mas deles retirai os olhos rapidamente para ver mais pragmaticamente os macacos nas jaulas do Jardim Zoológico. É espantoso como esses homenzinhos pragmáticos estão em tudo: nada lhes escapa do que acontece ao seu redor. Vivem num perpétuo êxtase, retidos fora de si mesmos pela urgência dos perigos exteriores. Voltar-se para si mesmo seria distrair-se daquilo que se passa fora, e semelhante distracção seria a morte do macaco. A natureza é feroz: não tolera os que dela se distraem. Há que estar com cem olhos, em incessante “quem vem lá”, pronto a receber notícias das mudanças circundantes. Atenção à natureza é vida de acção. O puro animal é o puro homem de acção, o hommo pragmaticus.
O homem pragmático vive numa guarda avançada de si mesmo, agarrado com atenção ao teatro cósmico, deixando para trás de si o seu próprio ser. Entrincheirado, agarrado à baioneta, perscruta com binóculos de primeiríssima qualidade o mundo e tudo à sua volta e só vê dele, porque só elas são visíveis, as fronteiras de cada coisa. Muito raramente, consegue parar, mas nunca consegue reparar, re-parar.
A pergunta que sempre se faz quando se identifica uma nova espécie, neste caso, uma nova, de muitos milhões de anos, espécie de homem, é se os seus elementos têm inteligência. Registe-se aqui, para que conste: o homem pragmático é inteligente. E tal, como todas as restantes espécies de homem, leva a inteligência presa por um alfinete. Pode perdê-la por dez mil reis de mel coado. Mesmo o mais inteligente de todos os homens só o é às vezes, e muito poucas vezes. O mesmo se pode dizer do sentido moral e do gosto estético. No caso específico do homem pragmático, a fome e a sede de beber são psicologicamente mais fortes, têm mais energia psíquica bruta do que a fome e a sede de justiça. Quanto mais elevada for uma actividade do organismo, menos vigorosa, estável e eficiente será no hommo pragmaticus.




À Lareira

Sentado em frente ao fogo quente da lareira, dormitava embebedado pela música suave e insinuante da chuva que, desde há várias horas, inundava os jardins e hortas, despertando a cobiça dos caracóis e de toda a restante bicharia, a quem a natureza determinou, com superior sabedoria, que só teriam direito a pastagem nos dias em que as ervas e caules das tronchudas se enternecessem com água caída dos céus. Para os carneiros, touros, burros e gado congénere, foram reservados os outros dias.
Esta decisão, sábia como sabemos, foi tomada pela natureza numa altura em que os estudos para a criação do homem iam muito avançados. Já vários ensaios tinham sido levados a cabo, dando origem às variadas espécies de macacos e gorilas ainda sobreviventes.
Investigações posteriores levaram muitos autores a pensar que o homem seria descendente desses simpáticos animais. Mas não, se por descendência se entender a sequência de paternidades e maternidades.
Pelo contrário, o homem é o resultado de um conjunto de experiências mal sucedidas com vista à criação de um ser perfeito. A última, a que deu origem ao homem actual, criou um bicho de tal modo preocupante que a natureza cancelou o programa em curso, desistindo definitivamente da sua ideia de criar o tal ser perfeito.
Ora, nessa altura, todos os animais pastavam nos mesmos prados e nos mesmos dias e até às mesmas horas.
Não viria daí qualquer problema, não fossem os bois, os carneiros, os burros e seus congéneres responsáveis pela morte por esmagamento de quantidades astronómicas de caracóis.
Um dia, reunidos de emergência, os caracóis decidiram que prefeririam morrer de fome a ter que morrer debaixo das patas de qualquer burro, que aparecesse a trote ou a galope, na pradaria.
A natureza, sempre previdente, promulgou então a famosa Lei da Repartição das Pastagens no Tempo e no Espaço.
Caracóis, Camelos, Lagartos, Burros, Elefantes, Girafas, Grilos, e toda a restante bicharada aclamaram, no maior referendo alguma vez realizado, a natureza como sua rainha.
E assim tem sido até aos dias de hoje.
Durante a festa, que decorreu logo a seguir à publicação dos resultados do referendo e que animou todo o mundo conhecido e por conhecer, nasceu o primeiro homem.
Por desatenção, ou por aquela fraqueza que ataca os poderosos, levando-os a não prestar o cuidado devido a pormenores insignificantes, a natureza esqueceu-se de incluir o homem naquela, como em todas as restantes Leis promulgadas. Este lamentável esquecimento é a única explicação plausível para a busca incessante do conhecimento das Leis da natureza, a que o homem se tem dedicado desde então com um insucesso confrangedor, apesar dos nomes pomposos de Filosofia, Ciência, ou outros, com que auto-mimoseou a sua genuína ignorância.
No início limitou-se a subornar alguns animais, a que depois chamou domesticados, para que lhe lessem e interpretassem as Leis da natureza. Mas fê-lo com tal arrogância que os cães, os gatos, os bois e os outros preferiram, de acordo com o nº 8 do art.º 4º do Dec-Lei sobre a Distribuição da Sabedoria, jurar-lhe fidelidade a ter que revelar aquilo que, para todos, era mais do que evidente: as Leis da natureza não foram feitas para serem conhecidas, mas para serem respeitadas; como, por esquecimento, o homem fora excluído desse compromisso, nunca seria capaz de as respeitar e muito menos de as conhecer. Por isso, estaria condenado, para todo o sempre, a pastar a qualquer hora, em
qualquer pradaria, só ou acompanhado, mas sempre sem critério definido.
Enquanto, dormitando em frente à lareira, me entregava a estas reflexões, James, que como todos sabem é meu amigo, embora eu procure, de agora em diante, cada vez mais evitar essa qualificação para não ser repetitivo, incensava a sala com o fumo do seu eterno cachimbo. Media-a ao comprido e ao largo com os seus passos de antigo tropa. De quando em vez, parava. Olhava para o infinito. E tomava notas num canhenho sebento.
A chuva continuava a convidar lagartos, osgas e caracóis a regalarem-se com a fartura tenra da casca nova de roseiras e maracujás recém-plantados.
De súbito:
- Eureka! - gritou.
Acordei estremunhado:
- Quem?
- Como, quem?
- Pensei que tinhas dito o nome de alguém … - e procurei de novo o conforto do sofá - já estava na fase de começar a sonhar…
- Como podes tu sonhar num dia destes?
- Há dias próprios para sonhar? Como os dias próprios para as osgas pastarem?
- As osgas não sonham, meu caro.



Equimose

A borrasca traz borrifos de mágoa, de nódoa. Sangue de equimose flui na lapa da alma.
De colheril em punho entupo a embatucada chaga.
A ptose da alma entorpece, deslustra a vida, mágoa de borrasca que borrifa punho de colheril, de mancha em mancha
Pudenda dor banha, meiga, pérfida, carrasca, nobre, canalha o íntimo do íntimo. Silêncio silfídico, cilício ínscio, insidioso, sibila como um silvo, simoníaco, indaga gaiando, disúrico, urdindo, indolor e lorpa, palavra que lavre a dor.
Liberta erguido o punho fecundo.
Fanfarra íntimo a vida.
De colheril em punho, entupo a embatucada chaga.
Chaga que chaga
só chaga
se chega.
Alma seduzida, antes chagada, agora crescida, depois afagada, não afogues.
A seiva que verteste é seiva que cresceste.
Liberta o punho. larga o colheril.
Embatucada, a chaga já chega.
A borrasca inunda, imunda, a mágoa.
Sangue de equimose que flui no fundo profundo da alma.
Que liberta o punho se alma não tem mão?
Que olho se vê se não tem olhos?
Entupo,
embatuco.
Alma magoada dói sem dor.
Dói de doer sem ser.
Dói de ser.
Dói.
Alma magoada desconfia de ser,
desconfia de não ser,
desconfia.
Fia contos e descontos,
fia não ser, fia ser. Urde tecido de dor. Tece linho frio. Cobre-se
de linhagem que afaga.
Que segura alma insegura?
Que faz alma que desfaz?
A cãibra da alma é mágoa de borrasca, pudenda dor que banha carrasca, canalha o íntimo do íntimo.
Liberta erguido o punho fecundo.
Caia a cafua.
Lança o caíque ao mar.
Bolina.
No medronhal medrarão maçãs.
Sossega do sossego subulado do soveio que segura o arado e o jugo. Sossega no sossego suave da dor do inseguro.
Lança o caíque ao mar.
Bolina.
Que o vento sopra pela proa.
Alma seduzida, antes chagada, agora crescida, depois afagada, não afogues.
Que alma assim confia nas ondas revoltas do mar sedento e sedutor?
Que mar é este que arde como o fogo?
Que fogo é este que humedece o meu ser?
Que sal tem este mar?
Que lenho arde neste fogo?
A seiva que verteste é seiva que cresceste.
Que navios navegam neste mar?
Que fósforos acendem este fogo?
Chaga que chaga
só chaga
se chega.
Que pedras lavam estas ondas?
Que corpos aquece este fogo?
Fanfarra íntimo a vida.
Entupo, embatuco.
Alma que pena não quer penar.
Que chagas cura esta água?
Que frio mata este fogo?
Lança o caíque
ao mar.
Que sede mata esta água?
Que gelo degela este fogo?
Sossega
do sossego
subulado
do soveio
que segura
o arado e o jugo.
Alma magoada dói sem dor. Sem ser. Dói de ser. Dói.
Que destroços despeja este mar na praia dourada?
No medronhal, medrarão maçãs.
Alma com cãibra de pudenda dor, carrasca, canalha, dói por tudo, por nada.
Alma com mágoa, que banha o mais profundo do seu fundo, dói por ser, por não ser.
Que dor de doer é esta?
Liberta o punho, larga o colheril.
Embatucada, a chaga já chega.



A Origem do Problema

Era uma vez um urso que ursava muito bem. Ursar significa andar como um urso, comer como um urso, dormir como um urso, enfim, fazer tudo como um urso.
Era um urso feliz aquele. Apesar de todas as infelicidades e maus momentos por que tinha passado, como toda a gente e todos os ursos, mantinha, ao contrário de toda a gente e de quase todos os ursos, desenhadas na face, rugas de sabedoria que lhe davam um aspecto de permanente sorriso.
Vivia só na sua floresta. E na sua floresta encontrava tudo o que lhe fazia falta.
Um dia um outro urso, de ar empertigado e pêlo bem escovado, de gravata ao peito e sapato envernizado imigrou - o diabo explique porquê - para a sua floresta. Recebido como merece ser recebido um urso de lenço branco e meias de seda, rapidamente realizou que aquela seria, de agora em diante, a sua casa. Sonhou, na primeira noite, com a felicidade inefável de poder ser útil a um vizinho de unhas rentes de arranhar só quando de outra forma não pudesse ser. As suas unhas, pelo contrário, eram grandes e bonitas. Bem tratadas e fortes, eram um dos muitos motivos para se orgulhar de si mesmo. Todos os dias as envernizava cuidadosamente. Sabia que deste modo se manteriam fortes e belas. Assim, ninguém detectaria o perigo que representavam, e melhor desempenhariam as suas tarefas.
O urso-qu’-ursava chegou a pensar que aquele verniz todo só servia para que o seu novo vizinho utilizasse as unhas como espelho para, a todo o momento, se deleitar consigo mesmo. Demorou muito tempo a perceber que não.
As pulgas, que pululavam debaixo da gravata do recém-chegado, realizavam congressos trimestrais, cujo tema único era: “Será o verniz que dá força às unhas, ou a força das unhas resultam simplesmente de se esconderem debaixo do verniz?”
Desenvolveram-se duas grandes tendências académicas, na sequência desses congressos.
As pulgas, aderentes à primeira tendência segundo a qual seria o verniz que daria força às unhas, envernizaram as suas próprias patas. A partir daí, esta tendência passou a dominar cientificamente todos os congressos.
Apesar da mais que visível inutilidade dos referidos congressos, estes continuaram a ser realizados, para que ficasse cada vez mais claro que a única perspectiva que merecia dominar era a perspectiva dominante.
O urso recém-chegado tinha, no entanto, um grande problema: não sabia ursar.
O urso-qu’-ursava propôs-se ensiná-lo a ursar.
Criou uma escola do 1º ciclo, depois uma escola EB2,3, depois uma escola secundária, mais tarde uma universidade.
O urso recém-chegado concluiu a escolaridade obrigatória, obteve o diploma de ensino secundário, bacharelou-se, licenciou-se, mestrou-se e finalmente concluiu o seu doutoramento.
(…)
Actualmente, a floresta é habitada por dois ursos: um que diz-qu’-ursa, mas não ursa, e outro qu’-ursa e por isso raramente diz-qu’-ursa.
O que diz-qu’-ursa-mas-não-ursa passou a ser o responsável por aquela escola e por todas as que, em todas as florestas, foram construidas para ensinar ursos a ursar.
Tal como os congressos das pulgas, essas escolas servem, desde então, para que fique bem claro que a perspectiva que merece dominar é a perspectiva dominante, isto é, a perspectiva de quem diz-qu’-ursa-mas-não-ursa.




Uma Novidade

Uma novidade, todavia. Mais um piolho. Pensei que os tinha catado a todos. Enganei-me. Havia ainda um, bem gordo, dos que enterram bem fundo o ferrão. E eu não o tinha visto, ou não quisera ver, o que é o mesmo.
Que posso eu fazer agora? Nada, como de costume. Não tenho unhas para o desfazer em sangue como devia. Limito-me a apartá-lo da minha cabeça e do meu coração. Com ele, irá o território que teimosamente, como cão a cheirar o cio, marcou em torno de si.
O território não tem culpa, a não ser a de se deixar marcar com o mijo de um piolho.
Coelho bravo, não gosto de erva a cheirar a mijo de bicho pestilento. Espiolhou o que não devia, espiolhou o que nem sequer havia. De bexiga cheia, agora pode despejá-la.
Empestará o ar com o cheiro untuoso com que te marcou. Taparei o nariz e assim não verei, cego de odores, a peste. Não estou chateado, a não ser com a ideia de que, para ti, só posso ter dois sentimentos: chateado, não chateado; bola branca, bola preta. Não é justo, podes acertar em metade das tentativas, e, se não acertas à primeira, acertas à segunda. Muito conveniente, não haja dúvidas, mas muito injusto também.
O segredo fica comigo, em todo o caso, e é bom que me penses em forma de palha de aço.
Quando me esfaqueares, a lâmina bem enterrada até ao punho no sítio que faz doer todo o corpo e toda a alma, não me estriparás com medo de arrombares o fio da navalha nas tramas de esfregar os tachos em que cozinho o sentimento e a dor, a alegria e a tristeza.
Valha-me essa mentira, esse fingimento feito palha de aço.
Não queiras saber a forma de pessoa em que se transfigura de tempos a tempos piolho tão piolhento, nem que mictório é o terreno que pisa.
Não to direi, de qualquer modo. É pena que, quando bebé, te tenham dito tantas vezes que linda menina. Ainda agora te gostas de ver bebé, na esperança de que se te encham os ouvidos com esta falta de motivo de conversa que se traduz na banalidade do elogio óbvio.
És linda, mas não mais do que qualquer pessoa pode ser, sem, na verdade, o ser mais do que qualquer outra. O que já não é nada mau.
Mas essa tua ideia de que as coisas deveriam ser de outro modo, como quando as velhinhas de xaile preto se abeiravam do teu berço e exclamavam a tua beleza, para reforçar os laços de solidariedade com a mulher tua mãe que acabara de passar por trabalhos só de mulheres, só potencia essa tua tendência para que qualquer piolho possessivo faça de ti um mictório. Problema teu, desgraça minha.
Gosto de ti, mas não suporto cheiro a mijo.
Fui eu que disse que esta era uma novidade. Forma de falar de quem já mal sabe o que diz. Na verdade não é novidade nenhuma. Não há novidades. Já expliquei tudo. Está tudo claro.
Escrevo como quem lavra a terra, seca, antes das chuvas. O pó enrola-se num novelo que me queima a garganta e me greta a pele.
Não me toques: o pó secou a pele; não me toques, se não sabes que unguento poderá aliviar esta secura que eriça todo o meu corpo.
Um dia choverá e o ar ficará lavado. Lavada a terra, de novo será preciso lavrá-la.
E esta é a sina de quem fez das palavras um arado. Ei ô! Puxa que eu empurro.
Nas palavras, nas frases nascem os sulcos, quais esqueletos de letras e vazios que suportam o peso das gigas de roupa por lavar e no retorno estalam de dor com os carregos de roupa ensopada da barrela.
Puxa que eu empurro.
Os bois à frente, o arado no meio, eu atrás.
Marcho atrás do arado, destas palavras que tu puxas.
Ao lado, ladra o cão, feliz de cheirar o cheiro da terra. Coça as pulgas, resmunga com as moscas. Não tem piolhos que o incomodem. Problemas de gente não afectam os cães.
Salta os sulcos, como criança endiabrada em dia de esvaziar o mar e construir castelos na areia. Não pára, tropeça nos torrões e ladra contra o destino. Se cai na traição de um pedaço de terra mole que lhe prenda as patas e, na ânsia do salto, afocinha contra o pó barrento, morde o ar e o chão. Sacode depois o corpo no jeito de quem se escova, e sai do buraco, focinho no ar, rabo a ventilar, vitorioso.
Nem ele sabe que rugas são estas que desenho com palavras, sulcos de terra a lavrar. Não há vitórias nem derrotas contra elas. Só o fluir do destino, do tempo sem tempo, ou da impaciência do tempo, esgotado por não se encontrar no círculo em que se encerrou, sem saber porquê nem para quê.
Um cão que assim se comporta também tem a sua história. Este que me acompanha nesta labuta geórgica, mais do que qualquer outro, ainda que seja legítimo termos dúvidas a respeito do mérito de qualquer bicho, e sem ofensa portanto para todos os outros, merece que lhe seja contada a sua.
Lavrava eu a terra, num tempo de leveza, o arado areado, brilhando ao sol e resplandecendo com as gotas da chuva, quando este cão surgiu no horizonte.
Desceu o monte que daqui se avista, farejou os ferros que feriam a terra, lambeu-me as botas e pôs-se a caminhar ao meu lado, como se ao longo de toda a sua vida não tivesse feito outra coisa.
Deitou-se quando me sentei naquela pedra que, se puseres as mãos por cima dos olhos em forma de excesso de boné, poderás ver à sombra da pereira, da única que mantenho no meu jardim.
Na altura, era viçosa e cobiçada por pardais, canários e melros.
Não fui eu que a plantei, não a reguei. Falando a verdade, foi ela que me regou a mim, foi ela que me acalmou a sede nas tardes quentes de abafar.
Um dia, entrou-me no coração e disse: eu sou a tua pereira, podes ter outras árvores, mas a tua pereira sou eu. Estas palavras não fui capaz de entender. Pareceram-me não mais do que o restolho das folhas sob a brisa da primavera.
Habitando o meu coração, sem que eu o soubesse, conseguiu que um dia a entendesse. E amei aquela pereira. Era a mais bela pereira do mundo. A sua beleza ofuscava-me e não acreditei que a merecesse.
Com medo de a perder, perdi-me no mundo, viajei por outras terras e quando voltei, trazia uma nova pereira que, essa sim, pensei eu, seria plantada e regada por mim.
Não lhe ligou a que eu tinha no coração, nem a viu, assim me pareceu. E disse: todos os dias esperei por ti nesta calçada, vesti-me de todas as cores, embelezei-me cada dia para te receber, dias houve em que desanimei e deixei que a tristeza me roubasse a cor e o brilho, mas hoje estou bela para ti. Deu uma volta em torno de si, com a graça de uma menina, e perguntou: que te parece? Abraçou-me e senti o calor meigo das suas folhas. Foi então que viu a pereira que eu trazia debaixo do braço. Entendeu mal, mas entendeu tudo.
Quem sou eu para a julgar? Ela soube a verdade e só eu sabia que a verdade era mentira e não tive como articular uma única palavra, aturdido, confundido comigo mesmo.
Nunca mais falou comigo. Vive ainda no meu coração, mas nunca mais falou comigo.
Sentava-me, por vezes, então, naquela pedra, como que a pedir desculpa.
Foi junto de mim, e dessa pedra, à sombra da pereira, que o cão se deitou, o focinho entre as patas dianteiras, como se estivesse decidido a lá permanecer até ao fim da sua vida.
Sem quebrar a sua quietude, fez estalar a sua voz no silêncio e perguntou, sem me olhar: Quem és tu? Fez-se ainda mais silêncio. Esperei que finalmente a pereira falasse e lhe respondesse. De novo, o cão: A pereira sei eu quem é, a ela não pergunto nada, a ti pergunto, sem ofensa, quem és tu? Eu sou eu, respondi. Tu és eu, foi o que disseste, se bem entendi, - e continuou – para além do erro de gramática que pode muito bem deixar de o ser, se assim o quiseres e o resto do mundo aceitar, parece-me que não estás a dizer coisa com coisa; como podes tu ser eu? Pois é, acontece que eu sou eu, e a mim me tem bastado saber isso para não me inquietar com erros de gramática ou de sentido. O erro não é teu, o teu erro é o de me obrigar a errar quando quiser dizer a alguém quem tu és; terei que dizer que tu és eu, e isso, vais-me desculpar, não acho bem, não que tu sejas eu, mas que eu não possa dizer quem tu és de uma forma correcta; peço-te portanto que, não tendo ficado calado até aqui, o que eu até respeitaria, agora assumas a tua responsabilidade de responder com correcção a uma pergunta tão simples. Bom, aceitarás, defendi-me, que a resposta não é simples. Aceito, mas como não sou eu que tenho de a dar, não me parece que me deva preocupar com isso; só quero saber quem és tu, uma vez que o destino nos juntou e pretendo tomar conta de ti, e ainda nem sequer sei se mereces que eu me dê ao trabalho de te dirigir a palavra; por favor, diz-me só quem és tu, uma vez que vais ser o meu dono e portanto terás que me obedecer para eu possa cumprir com as minhas obrigações de lealdade e de protecção; só há uma resposta que me possas dar, não será tão difícil como dizes. Eu sou tu?, é esta a resposta que queres? – perguntei. Vejamos, a ser uma resposta verdadeira à minha pergunta, dará que, querendo eu saber quem és tu, a tua resposta significa que tu és tu; está bem, faz sentido. Eu não disse tal coisa, eu disse: eu sou tu, e não tu és tu. Ouvi muito bem, e o que tu disseste é para mim inteligível, por isso é uma boa resposta que alimenta a esperança de nos virmos a entender; agora podes pensar o quiseres, até podes pensar que a resposta correcta é eu sou eu, desde que, quando falas comigo, digas eu sou tu, para que eu entenda que tu és tu. Calei-me.
O cão era esperto. Apeteceu-me perguntar quem era ele, afinal. Mas faltava-me a coragem: esta conversa dava sinais de ser interminável e muito fora daquilo que me trazia àquele lugar, a busca de paz que a pereira me obrigava a procurar sozinho, desde aquele dia em que me paralisou a alma com o calor do seu coração e a frieza do seu silêncio. Eu não sou eu nem tão pouco tu – recomeçou o cão, respondendo ao meu silêncio -, eu sou a minha história, que será a tua também a partir de hoje, uma vez que te escolhi para meu dono; a minha história é tudo o que está para trás e tudo o que pode estar para a frente; se me quiseres ouvir, ouve, mas não te atrevas a passá-la para as palavras que usas; quando me calar, calar-me-ei para sempre, mas falar-te-ei ao coração, com lealdade, como me estipula a minha condição de bicho, e como bicho me comportarei por toda a eternidade, agora que tenho dono.


Águias

O que interessa não é que eu seja águia, o que importa é que não me esborrache no chão por não saber voar.
Os ricos sabem voar e acendem o cigarro como se ele já devesse estar aceso, ou com a displicência de quem pensa que alguém lho deveria acender.
Só os pobres têm de pensar no que fazem antes de acenderem o cigarro. E pobres, não são os que não têm dinheiro. São os que pensam no que fazem, antes de acenderem o cigarro, ou uma fogueira.
Por uma decisão de vontade, eu quero ser pobre, mesmo que o não seja.
Não me interessa a displicência, por muito rico que seja. E rico não sou. Os ricos são águias.
O que interessa não é que não me esborrache no chão, não é que fique inteiro; o que importa é que os ossos não se me desfaçam de encontro à calçada por não saber que não sei voar.
O que interessa não é que as águias voem e sobrevoem a minha cabeça (é o que mais há), o que importa é que as suas garras só se agarrem à minha sombra e me deixem em paz.
Pobre sombra de mim, a minha única amiga, a única que se sacrifica e assim me poupa às garras rapaces das águias.
Sou pardal. Voo, mas não sei voar. Voo sem cultura, sem beleza, sem escola. Tudo o que aprendi foi no ar. Por isso voo, mas não sei voar.
Não me interessa o voo das águias.
O voo elegante, cultural, escultural. O voo com arte, com escrita e com ciência. Sem ciência eu voo consciência, consciência de pardal que beberrica, olhos inquietos, corpo ansioso, asas sobressaltadas, pés saltitantes, na borda de água.
Sou pardal, quero e gosto de ser pardal.
Ó águias corpulentas, esculturais e belas, esborrachai-vos contra o sol. Que o sol vos queime. Águias de churrasco com piri-piri é o prato ansiado das mulheres.
Light. Águias de churrasco com piri-piri light.
On the rocks? Sim, duas pedrinhas. Com açúcar? Não, que horror. Sabem que os quinhentos gramas, que emborquei a mais ontem, iam dando cabo do amortecedor esquerdo do meu porche? Aquele revestido a ouro. Não, não sou pindérico. É de prata. Revesti-o a ouro para luzir. Super? Sim, sem chumbo. Um porche, com duas pedrinhas de gelo, sem açúcar. Deixe estar que eu pago.
E já agora… uma águia de churrasco com piripiri light, super, sem chumbo.
Nãão, deixe estar que eu pago.
Águias de todo o mundo, uni-vos, e esborrachai-vos contra o sol.
Deixai estar que eu pago.
(…)
O que interessa não é que eu seja pardal (se calhar não sou), o que importa é que não deixe de ser pardal.
E voe pelos ares como quem não sabe para onde vai.
Ninguém sabe para onde vou. Voar por voar é assim que me quero. Enquanto houver ar, sol e chão, voarei. No ar. Foi no ar que aprendi tudo o que sei. E tudo o que sei é ar, flui em meu redor, nunca é o que era, abraça-me, doce e brando. Não me segura, só me abraça. Não me amarra, não me agarra, só me abraça.



Água da Chuva

Em mim nada secou. Um pingo de chuva lava o passado, outro pingo lava o futuro.
Escrevo em terra seca palavras aguadas. A terra sedenta engole a água, ruidosa, aos arrotos. Ficam as palavras, este fingimento que fustiga como o vento. Fustiga o vento.
A água da chuva lava tudo o que sei. Em mim nada secou. Só um pouco de chuva lava o que sei, mágoas de tempos que os rios levam para o mar.
Escrevo em terra seca, sedenta. Mágoas de tempos que hão-de vir que os rios não levam para o mar. Mas em mim nada secou. Um pingo de chuva lava o passado, outro pingo lava o futuro. Este meu corpo magoado, a chuva não lava. Só o passado. Só o futuro. E é tudo. E é nada. Porque este meu corpo magoado, a chuva não lava.
As palavras agasalham a mágoa.
Não dói. Já nem dói. Só o vento fustiga.
O vento leva as canas do canavial para outro porto. Às canas leva-as o vento. Não me agasalham as canas.
Só as palavras. E às palavras não as leva o vento. Ficam as palavras.
Nada mais
Escrevo em terra seca palavras aguadas. A terra sedenta engole a água, ruidosa, aos arrotos. Ficam as palavras, este fingimento que fustiga como o vento. Fustiga o vento.
Vento, não me dóis. As palavras fustigam como tu
E rio.
Chicote contra chicote.
E eu a ver
E rio
Fica com a tua águia, contigo. Voa no seu dorso. Mergulha no canavial. As canas, leva-as o vento. As palavras, não.
E eu? Não o saberás nunca. Rio de rir, de água que marulha, mansa, no leito pedregoso. Pé aqui, pé ali, não vá rasgar-se a pele, de caminhar. Rio de água que flutua no ar, rio de rir. Não há nada para saber. A água sabe a água.
O ar sabe a ar. Eu sei a eu. Tu sabes a tu. Nunca me saberás. O ar não sabe a água. A água não sabe a ar.
O prometido é devido: nunca me saberás. Serás sábia como as águias por não me saberes. Voarás como elas, com elas e por elas. Serás sábia.
E tu? Não o saberei nunca. Fingimento de ais, de canas que flutuam ao vento. Canavial, ninho de águias. Não serei sábio por não te saber. Não serei águia por não te voar. Serei rio de rir. Serei ar de voar.
Serei pardal atabalhoado. Nunca te saberei.
E nós? Não o saberemos nunca. Juncos postos a seco, de navegar em rio marinho. Vagas alteradas, sem paz, sem guerra.
E os outros? Não o sabereis nunca. Parados, à janela, espreitais o ar e a água. Peitos no peitoril. Nódoas negras de esperar bálsamo de saber. Não voais, não navegais. Esperais. Águias sábias. Quem vos vale?
Montanha de subir, eu não. Talvez tu. Talvez vós. Eu não. Construo este muro em meu redor. Salvo as flores do vento que leva as canas do canavial.
Estendo um manto de parede a parede. Não vá a neve crestar as minhas flores deste meu jardim. O único. A cada subida, uma nova fieira de tijolos no meu muro. Em cima, arame farpado. Aviso: se subir, vai rasgar as rendas da saia. Do outro lado, aviso: se vai subir, beba primeiro. Do outro lado, aviso: aperte os cintos de segurança. Do outro lado, aviso: cuidado com o cão. De todos os lados, aviso: se quer subir, desça. Em cima e em baixo, em letras piscapisca de néon, ora em cima, ora em baixo, aviso: não suba.
O muro já não sobe. Já ninguém o quer subir. Uf. Alívio. Tanto tijolo. Tanto mar de suar. O muro só sobe se o subirem. Ninguém o sobe, ele não sobe. Sábio, este muro.
Vou alindá-lo um dia. Vou pintá-lo de verde, de flores. Malmequeres. Isso mesmo, malmequeres. Mal-me-que-res.
Dentro do muro de tijolos, um muro de palavras. Estas e outras. E eu dentro delas. Rio de rir. Para os dois lados. Para jusante e para montante. Quem ri do rio ri-se de si. Rego o meu jardim. E espero ver as flores florir.
Rio de regar. Quem rega do rio rega-se a si. Rego e renego. Renego o mar. Quem renega o mar renega-se a si. Renego o mar e rego o jardim. Mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal… Renego o sal, as lágrimas e o mar... e Portugal, se for preciso. Rego do rio o meu jardim.
Se por qualquer razão me esfaquearem de novo, nada mais encontrarão que pequeníssimos cadáveres de saudade.
Em mim nada secou Não possuo a morte no coração, mas sim um pouco de chuva que lentamente apaga o fogo doutros dias mais simples
Escuto o lamento das águas e sei que tudo
continua vivo no fundo do mar… e no coração persistente
das plantas.
Na boca ficou-me um gosto a salmoura e
destruição. Apenas possuo o corpo magoado destas
poucas palavras tristes que te cantam.
Mão na mão, percorremos todas as águas,
conhecemos os domínios húmidos dos monstros marinhos
e a loucura dos peixes cegos, que deu nome ao nosso
amor e às cidades costeiras.
Outras feridas alastram subitamente no fulcro da
memória
Outras noites atravessam-me
Semeiam pelo corpo flores e pânico
Falo com os barcos postos-a-seco, das salivas
marinhas cresce uma quilha enfurecida
A escrita é um marulhar incessante
Imito a paisagem como se te imitasse, ou te
escrevesse.
Teu corpo dilui-se nos ossos da página, contamina
as cartilagens das sílabas
Resta-me o fingimento sibilante das palavras
Caminho pelo interior das dunas, apago o rasto de
tinta acetinada, sou terra num texto onde não encontro
água
Só noite e um rumor imperceptível no coração
Mais nada.
Vou partir
Como se fosses tu que me abandonasses.
Que mais posso dizer?
.


Há tempo em que o tempo caminha devagar

Ela (Ela é um nome e não um pronome: Ela não corresponde a ninguém, senão a Ela mesma), Ela, dizia eu, sonhara, as tripas a arder de ansiedade, com o seu primeiro dia de escola a ensinar gaiatos. Não sabia que esse fogo de queimar ventres haveria de lhe beber a tinta dos olhos e da pele, numa ânsia de diarreia sem princípio e sem fim, nesse preciso dia, formatado para ser fausto, mas destinado a ulcerar-lhe o estômago.
A professora nova é muito branquinha - avaliou o cachopo, habituado às foeiradas dos raios de sol e às queimaduras que queimam por fora, mas amaciam por dentro, acordando a preguiça e adormecendo as carnes e os ossos. De pensamento rápido, às carreirinhas curtas e saltitantes, arrematou: coitada. E neste último lanço de pensamento, mal sabia, era contida toda a sabedoria e toda a ignorância a respeito da professora nova.
E do mundo.
O cachopo tinha olhos de basalto, esbugalhados como dois tumores, e um cão treinado para afugentar ladrões de fruta.
No sítio onde vivia, nem amoras silvestres medravam, só cimento e pó, daquele que suja os corpos e também daquele outro que desbota as almas. O bicho, cioso das suas competências, na falta de fruta que se roubasse e, por via disso, de ladrões de fruta, que, de outras coisas, não faltavam, perseguia moscas e abocanhava aquelas que, indiferentes aos seus avisos caninos, sugavam dos caixotes do lixo a porcaria com que haveriam de ficar gordas e brilhantes e, com toda a arrogância dos insectos, o desafiavam, em voos rasantes ao seu focinho musgoso. Mastigava-as, com os beiços arrepiados de nojo e, não sabendo cuspir como o dono, deixava-as cair, a pretexto de uma nova perseguição, apoiada em latidos de ensurdecer toda a vizinhança, ou então, de um sono súbito que lhe fazia pousar o focinho, a escorrer cuspo, no asfalto.
Tinha sido um temível guardião de fruta perfumada, transformara-se numa besta de guardar coisas podres, a cheirar a morte.
O cachopo, também.
Já se passou muito tempo, desde esse dia em que Ela e o cachopo se conheceram numa sala de escola primária.
O tempo, esse escarrador de memórias e sorvedouro de ninharias, não deixa que tudo seja lembrado.
Fica a azia do escarro, o ventre a rasgar, as palavras a farpearem os tímpanos, o cachopo a dizer puta que pariu, professora, o sonho a entrar numa máquina de fazer morcelas, de sangue escorrido em alguidares de barro, com a faca afiada, sangrenta, pousada no cimento cinzento do pátio de matar pitos, e nascem desejos anões, daqueles que nunca chegam às prateleiras das coisas doces.
Nascera bebé rosada, com umas curtíssimas repas louras a escorrerem pela cabeça luzidia. Ainda cega para o mundo, ouvia que era bela.
Quando abriu os olhos, viu-se linda nos olhos que a rodeavam. Decidiu que seria mulher bonita. Se outra solução havia para si, Ela não a encontrou. Não era aquela a altura de grandes cogitações e hesitações. A decisão era para ser tomada, antes de começar a pensar, que a vida não espera, nem dá valor a esse luxo preguiçoso de pensar. Assim sobreviveu àquela primeira chicotada da vida, e assim viveu, mulher bonita, regalo de se ver, protegida como se protege um tesouro que, não rendendo o que pode no mercado dos agiotas e contrabandistas, vale o que deve nas feiras populares e nas bancas das coisas em primeira mão.
Haveria de ser professora de putos, e foi e é. Haveria de ser mulher casada, e foi e é. Haveria de ser mulher feliz, e foi e não é. Tudo o resto que haveria de ser, foi e é. Só feliz, foi e não é.
Dos montes secos, loucos de sede, a cheirar a fumeiro e vinho verde, desceu um dia o seu homem. Nas mesas compridas, sentava-se uma fratria em número suficiente para que ficasse garantido que dos irmãos, um se dedicaria ao import-export de sonhos e um outro seria padre, para que deus perdoasse ao negociante de fantasias os pecados das discotecas e quejandos.
Aos sobrantes, o destino se encarregaria de lhes ditar o futuro: não eram bolas brancas nem bolas pretas; eram todas as cores que a teoria das probabilidades exige para que, pelo menos, saia uma bola branca e outra preta.
O seu homem era a bola branca. Rolara pelas colinas abaixo daqueles montes quentes, áridos, de queimar os pés, e chegou seco e sujo de pó.
Os padres não viram nele vocação bastante, iria dedicar-se, graças à conta bancária emigrante da família e ao seu ar seráfico de despadrado antes de ser padre, ao mundo das finanças.
Despido antes de se vestir na figura de quem perdoa pecados, mostrava a ingenuidade de quem perdeu a inocência sem saber porquê.
Foi atraída por aquele homem bom que, quanto mais escondia o que não havia para esconder, mais mostrava o que não havia para mostrar.
Algum mistério se acocorava atrás dos arbustos que plantava em seu redor, quando olhava para Ela, ou, quando, os olhos perdidos no horizonte, as palavras dirigidas a uma outra qualquer, tocava nos seus seios, num gesto distraído, a cavalgar no entusiasmo da ideia.
Ficava surda, como se levasse um murro nos tímpanos, e procurava o mistério atrás da folhagem, apurava os olhos, tranquilizava o coração - afinal era nada aquele gesto que demorava a demorar-se em si - e encontrava só os sinais da sua paixão nascente.
Agora, que o tempo arrotou umas quantas memórias, aliviando a acidez do seu ventre queimado de angústias, sabe que o mistério era a sua paixão que espreitava, agachada atrás dos arbustos. Aos poucos, foi saltando para o terreiro e, quando não havia motivo para se esconder de novo, dançava. O mistério dançava, primeiro a um ritmo lento e tímido, mais tarde, descarado, em passos alucinados, carregados de suor e risos. Era a sua paixão, não havia nada mais para saber. E ela, a paixão, dançava a compasso do mistério. Não havia mais nada. Nem Ela, nem o seu homem, só a paixão.
De tanto se mostrar em campo aberto, por vezes, a paixão perdia o mistério. Sentia-se, então, vazia, não era a acidez que agora sente, era antes um sabor a nada que lhe brotava do estômago, alcalino e enjoativo, e lembrava-se que ele não a beijara com o calor que Ela rejeitava, explorara o seu corpo, mas parara quando Ela quisera, não ousara sentir o seu corpo quente e húmido, deixara que os seus seios, entumescidos de prazer, assim ficassem até que a aragem fria lhes restabelecesse a textura da pele, e lhes roubasse a película fina que bastaria tocar para lhe chegar ao coração, à alma e a todo o corpo, sedento e molhado.
Ela recusava o seu corpo por instinto, não por vontade, ele não ousava, por pavor do que sentia no seu, dele, que no dela não fazia a mínima ideia. Na sua cabeça de homem, Ela amava-o com a alma e com o sentimento, ele, pelo contrário, não conseguia evitar de a amar com o seu corpo, e isso assustava-o, porque os diques podiam rebentar, nunca sabia quando, e denunciar o seu amor carnal, de carne mesmo.
Na sua cabeça de mulher, ele amava-a com respeito, com o seu corpo já ela tinha percebido, mau seria que assim não fosse, mas, mais do que convinha, fazia-lhe a vontade e aceitava as suas recusas, precisamente quando Ela o amava com o seu corpo, dela, também. Nessas alturas, sofria o vazio e predizia o sofrimento.
(...)
O tempo é água, corda, cisne louco, num manso deslizar do silêncio e dos peixes que agonizam entre os juncos. Ela lembra-se do tempo.
Começou por ser toda sua, dele, na alegria imensa de lhe dar a mão, sorrir-lhe de baixo para cima e caminhar formosa e segura a seu lado – de novo pequenina e tão inocente como no tempo em que ainda tinha tranças e era levada a ver o mar da sua infância.
Amou-lhe as mãos, por ter pensado então que o amor era só isso, contemplar o azul das veias e acreditar que um sangue, o vinho generoso da primeira paixão, lhe estava prometido desde o princípio dos tempos.
Amou-lhe também as ideias claras, firmes pelo rigor e pela exigência, do tempo em que lhe anunciavam um país desconhecido, um futuro e um altar.
Durante o primeiro ano de namoro, dividiu-se entre a perversidade e a inocência das meninas educadas para recusar ao homem a segunda metade da maçã do mundo.
Se ele tivesse sabido forçá-la a ir para a cama com Ela, outra seria a cumplicidade, o momento transgressivo da sua dádiva recíproca. Assim, foi-se resignando à investida das suas mãos nas sessões de cinema, nos vãos de escada de quando se abrigavam da chuva, nos elevadores e nos bancos vigiados dos jardins.
E depois o amor era sentar-se a seu lado no autocarro, ouvir o contínuo elogio da sua beleza e estar no centro de um transe que não tinha fim na sua adoração por Ela. Enamorou-se perdidamente por esta adoração. Sabia-lhe bem como um perfume de rosas. E compensava todos os vazios que a sua resignação desmazelada não cuidava de preencher, como pássaro que passava fome, para ter o que comer mais tarde.
(...)
Ela era amada, e o seu amor era amar o amor que ele tinha por si.
Ele era o amor, o amor com que sempre tinha sonhado.
(...)
Há tempo em que o tempo caminha devagar. Nós, com pressa, e ele, nada.
Imperturbável, pé ante pé, nem olha para a nossa pressa de crescer, de amar. Tanto para viver, tanto para fazer e desfazer, e o tempo, em compasso de caracol, caminha ladeira abaixo, ladeira acima, como se tivesse o tempo todo do mundo. À espera que o tempo passe, desesperamos o primeiro dia de escola, o primeiro dia de ser grande, o primeiro dia de todos os dias, que ainda todos são os primeiros, mas um haverá que será o primeiro dos primeiros. E ele não passa. Esperamo-lo à janela, aos pulos, de calções, na rua, com ar de intelectual, de buço a despontar por cima dos beiços, ou de caroços a rebentar no peito. E nada.
Tempo há em que o tempo corre depressa demais. Nós, com vagar, e ele, nada. Imperturbável, em passo de corrida, nem se dá conta do vagar com que queremos parar os olhos, encostar a testa na montra do mundo, cobiçar a beleza lenta das coisas que respiram e das coisas que respiramos. Parece, agora, que o tempo não tem tempo, e nós, que o temos, não o temos, que ele não se deixa agarrar.
Por vezes, os pobres, os miseráveis imploram, os joelhos esfolados de pedir, a língua seca de rezar, os olhos queimados de olhar o nada e o vazio, que o tempo apresse o passo, que o fim do mês tarda e a côdea de boroa não chega. Infelizes, chamam a morte, e não sabem. O tempo, ao som das preces, apura o ouvido e, por negligência e gosto de mordomias, abranda a passada, só para contrariar. Desespero dos infelizes. Caladas as orações, chegado o fim do mês, o tempo recupera o tempo perdido, e corre mais depressa do
que antes. Tragédia.
O tempo é um cão. Morde-nos as carnes, e lambe-nos as feridas. Cão sem dono, mete o rabo entre as pernas quando o fitamos de frente, e arranca-nos as canelas quando lhe viramos as costas e nos deslumbramos com a imensidão do mar.
Sentados à beira-rio, a colar pensos nas carnes rasgadas e a enxaguar lágrimas ressequidas, procura-nos o tempo para nos lamber os dedos magoados. Disso e da mágoa se alimenta o tempo, esse cão danado e doce.
Por uma hora, uma singular hora, um tempo há em que o tempo se ajusta ao compasso da vida. Os ponteiros e as horas ajustam-se, aconchegam-se, vedam todas as frinchas que entre si podem deixar escapar o calor, o frio, a água e o fogo. E ali mesmo se amam o tempo e a vida, por uma hora, uma singular hora, em todo o tempo e em toda a vida. Amam-se como dois amantes que se amam pela primeira e última vez. Os rios, que percorrem os corpos, entumescem, galgam as margens, tecem almofadas de água e sol, e recuam e brincam, e saltam do leito e fecundam campos, rios e mares à sua volta, e, quando tudo é água e fogo, explodem em raios e trovões, a uma só voz, acordando os céus e fazendo tremer as profundidades da terra. Os olhos olham-se e, surpresos de se verem a si mesmos, cerram as pálpebras, ofuscados de luz, cegueira e saudade, e esperam que os rios voltem ao seu lugar. Assim é quando o tempo, por um instante, se acerta com a vida, por uma hora, uma singular hora, que é como esse instante se chama. Não tem família, nem nome de família, esse instante. Hora é o seu único nome e dela só podemos dizer como se chama a chama desse instante. Hora é o seu nome.
O respeito impõe que a veneremos como se fosse uma deusa. É a primeira das primeiras e é a única. Foi por ela que a vida caminhou mais depressa do que o tempo, é por ela que a vida não quer ir para a frente e arrasta os pés.
O tempo, por uma singular hora, apaixonado, continua inexorável, cão, como se tivesse ido às putas, e não pára sequer para recordar. Nada.
Felizes daqueles que estão acordados nessa hora. O tempo para trás e o tempo para a frente, mesmo cão, será sempre doce, até quando, furioso, rasgue as carnes e roa os ossos. Será sempre doce. Da sua saliva de fúria, nascerá bálsamo perfumado. Jasmim é o perfume.
É bom estar acordado na hora em que o tempo acerta com a vida.
Por mim, sei que estava a dormir na hora de acertar. Um sono pesado, de cansaço e desespero. Dormia para esquecer. Agora nada tenho para lembrar.
(...)
As novidades são como os bebés. Fazem o que fazem os bebés. Por isso, os pais e as mães e os tios e tias, avós, sobrinhos e sobrinhas das novidades têm que passar uma boa porção do seu tempo a mudar-lhes as fraldas. A novidade é mudar as fraldas. Essa azáfama incessante de limpar, de assear para não curtir as peles. Essa é a verdadeira novidade. A outra, a que faz como os bebés, é uma nora de tirar água, velha de milénios. Copo atrás de copo puxa água atrás de água.
Pinga que pinga, puxa que puxa, roda que roda. Só é novidade se virmos o que faz a nora, e se lhe mudarmos as fraldas. São os nossos olhos que fabricam a novidade. As nossas mãos, numa de tirar e pôr trapos, benzem o que os olhos vêem. E assim bendita, a novidade caminha com as fraldas coladas ao rabo.
Já não tenho novidades para te dar. Não me agradeças. Que o mérito não é meu. Ao tempo, sim. Agradece ao tempo, à cegueira do tempo que não deixa ver numa nora mais do que uma nora.
Descalça as sandálias, cobre a cabeça, esconde o corpo numa túnica azul, fecha os olhos, os lábios húmidos, a alma compungida e os pés ungidos com óleos sagrados (Jonhson, na falta de melhor), e balbucia uma oração ao tempo.
Não digas nada, não vá estragar-se a intenção. Não ouças nada. Não sintas nada. Mexe só os lábios, sinal de respeito. E agradece. Ao tempo.
Agradece por mim também, que não uso sandálias. Caminho descalço, os pés curtidos.
Não há óleo que os benza. E não consigo fechar os olhos, medo de perder a pouca luz que o grande luzeiro, por negligência, deixou em mim.
Não o avises, não digas nada. Não roubei. Não criei nem matei para roubar. Esta pequena luzinha ficou em mim, a iluminar as nódoas negras deste meu corpo magoado.





O Limoeiro

Daqui vejo um limoeiro. Já foi um lindo limoeiro. Todos os anos, por duas vezes, dava limões a quem os quisesse apanhar. Lindo limoeiro era aquele. Viçoso, tirava da terra a seiva de que se alimentava e nela deixava aquela que não lhe fizesse falta. Como aquele, não havia outro limoeiro nas redondezas. Belo e sábio.
Quando o regavam, ora protegia, com as suas folhas, os limões que nos seus ramos nasciam, se eram de tenra idade, ora os descobria para que a água fresca os refrescasse do calor do sol.
Sentindo-se um dia fraco, procurou na terra mais seiva do que a que costumava tirar.
E a terra não tinha para lhe dar. Teimou que sim.
Alongou as suas raízes. Procurou, com ânsia, na terra, em toda a terra que as raízes podiam alcançar, em todo o mundo, a seiva que o podia salvar.
Se encontrava aqui, perdia acolá. Limoeiro que tão bem limoava começou a deslimoar. Deslimoando, dia após dia, desmiolado um dia ficou.
Numa noite de fria aragem, decidiu com dor firme: “Eu sou demais para limoar como quero; metade serei para que limoe como possa.” E metade de si secou.
Não queiras tu nem ninguém tocar na ferida que nele se fez. A parte seca de si fere de morte quem lhe toca. Conta-se mesmo que só de olhar se pode ficar cego de ver ramos, outrora vicejantes, agora secos.
Muito se conta, nada se sabe. Segredos de limoeiro, só limão os conhece. E limões só os há da parte que não secou.
Que a eles nada se pergunte, porque nada entenderão.
Este é o limoeiro que daqui posso ver. Por ele canto o que canto. Entre ele e eu a diferença mede-se em metros, que é uma medida do postigo que a velha postigou, mas não a medida que mede a diferença entre mim e ele.
Para entenderes o que digo, terás de fechar os olhos, tapar os ouvidos, sentares-te no chão e não pensar. Sobretudo não pensar. E tu só sabes pensar.



O Tempo e a Verdade

Longos anos de estudo e sobretudo uma vida dedicada a tentar entender as pessoas, levaram-no a concluir que não era o Big-Ben que, originariamente, marcava as horas certas para o Reino de Sua Majestade e para o resto do mundo.
O genial relojoeiro, que idealizara e construira o Big-Ben, descobrira uma fórmula infalível para manter esse relógio-mor sempre a dar horas certas. Essa fórmula, mantida secreta pelo próprio relojoeiro até à hora da morte, ter-se-ia perdido definitivamente, não fosse a invulgar sagacidade de James.
Descobriu no livro de Júlio Verne, A Volta ao Mundo em 80 Dias, que os ingleses, para garantir o sucesso do seu herói, tinham, sem o saber, atrasado o relógio do universo em 24 horas. Ainda agora muitos fenómenos incompreensíveis se explicam, como um dia veremos, por esse atraso.
Na realidade, o Big-Ben era, e é ainda, comandado pelos próprios ingleses.
O genial relojoeiro tinha descoberto que havia ingleses que coçavam a cabeça rigorosamente de 5 em 5 minutos, enquanto outros tomavam chá de 5 em 5 horas.
Eram milhões os ingleses que assim se comportavam.
Observando com mais minúcia os hábitos dos súbditos de Sua Majestade, encontrou ainda muitos milhares de ingleses que lavavam as mãos de 3 em 3 horas, ajeitavam a gravata de 2 em 2 horas, verificavam se o fecho das calças estava apertado de 5 em 5 minutos, apertavam os atacadores dos sapatos de 6 em 6 horas, etc.
Não me parece conveniente fazer a lista completa dos comportamentos observados porque a maior parte diz respeito ao mais íntimo de cada um, como arrotar, palitar os dentes, assoar o nariz, urinar, lavar os pés, calçar as meias, abotoar o casaco, espilrar, fungar, sorrir, etc.
O mais importante é que ninguém começava no mesmo instante a pestanejar ou a lavar os dentes. Era portanto possível determinar, pela combinação de todos esses actos, o fluir do tempo com precisão superior ao milionésimo de segundo.
E nem era preciso utilizar todos os ingleses ao mesmo tempo. Muitos milhares ficariam como suplentes, não fosse o diabo tecê-las e algum, mais distraído, ou desconcentrado, se esquecesse de tossir no momento certo.
O Big-Ben foi então equipado com sensores que detectam 15 milhões, 782 mil e 523 movimentos em 8 milhões, 231 mil e 2 ingleses.
São esses sensores que comandam todo o mecanismo do relógio.
A volta ao mundo, que durou, de facto, 81 dias, completou-se ao octogésimo dia de viagem, porque os ingleses seleccionados e os 999 mil suplentes, suspensos das notícias sobre a maravilhosa viagem e, sobretudo inconscientemente desejosos que Júlio Verne pudesse escrever mais um livro, se esqueciam, por um ou dois segundos, de fazer o que deviam.
No total, a diferença cifrou-se precisamente em 24 horas de atraso para o mundo.
James demonstrou, portanto, que os ingleses estavam condenados a ser pontuais. Podiam atrasar-se ou adiantar-se o tempo que quisessem no cumprimento das suas obrigações que o relógio marcaria sempre a hora combinada.
Esta condenação em nada prejudica os ingleses. Primeiro, porque não precisam de fazer nada que já não fizessem para serem pontuais. Segundo, porque são amplamente compensados por serem os donos dos relógios de todo o mundo. E terceiro, porque nem sequer sabem o que estão a fazer.
Estes argumentos, pensava James utilizar quando foi chamado a explicar-se perante o Governo e a Corte de Sua Majestade.
Mas só de pensar no que teria de dizer, ficou rouco. Não se defendeu, por isso.
Quando lhe pediram que se retractasse destas ideias, ainda teve forças para responder altivo: “as ideias não se retractam, rebatem-se”.
E mais não disse.
Ao abandonar a sala, tomou três decisões que deram um novo sentido à sua vida. A primeira e a segunda já as conhecemos: refazer os seus cartões de visita e partir para a guerra. A terceira revelou-se bem mais dolorosa: sempre que lhe apetecesse coçar a cabeça, meteria as mão nos bolsos, sempre que precisasse de lavar as mãos, assoaria o nariz, sempre que lhe apetecesse tossir, lavaria as mãos, quando tivesse motivos para sorrir, espilraria, e assim sucessivamente.
Compreendo que duvidem da veracidade destas histórias. Eu próprio não acreditei em James quando me contou a forma gloriosa como morreu o filho de Staline.
A leitura do “Insustentável Leveza do Ser”, onde esse facto histórico é sucintamente relatado, foi uma primeira ajuda para o meu convencimento. No entanto, foram a tranquilidade, a atenção e o prazer com que os meus filhos me ouviram contar essa e outras histórias que me convenceram definitivamente. Só podiam ser factos absolutamente verídicos. Os seus olhos infantis, atentos e que rapidamente se adormeciam, logo após a última palavra da história, não podiam deixar margem para dúvidas.
Sei agora que as histórias que aqui vos conto não deviam nunca ser escritas. Os leitores sentem-se na obrigação de procurar a verdade no interior das palavras, das frases, dos parágrafos e até da própria história. Ora, a verdade, a verdadeira verdade não tem nada a ver com as palavras e muito menos com as frases ou parágrafos que possam ser escritos.
A verdade encontra-se fora disso tudo, algures próximo da forma como a história deve ser contada. É por aí que vos aconselho a procurar a verdadeira verdade. Para isso, aconselho-vos a decorar cada uma das histórias e contá-la a vós mesmos, olhos nos olhos, se ajudar, frente a um espelho, e assim se verá que aquilo que aqui se conta é a pura verdade.
O exercício da verdade é, na realidade, o exercício do poder mais absoluto. Daí que o conselho, que acima vos dou, não deva ser encarado como uma mera estratégia de compreensão e aceitação, mas antes como uma forma de aceder ao poder da verdade.
No entanto, como todo o poder, o poder da verdade é, na maior parte dos casos, ilusório e, muito frequentemente, completamente falso. O poder é mesmo, em certas situações, a sua própria negação ou a ausência total do seu exercício efectivo, o que, no caso do poder da verdade, faz com que a diferença entre a verdade e a mentira em nada altere a força e a consequente legitimidade do poder.